Zuleica
Crítica
Um fio da alma na amálgama do tempo

Silêncio e imponência. Uma história demarcada pelo tempo. O mesmo tempo em que estudamos, pensamos e refletimos sobre culturas, tradições… história. E a partir da história e seus desdobramentos, assimilação e projeções, apropriações e releituras, é que se fundamenta a série de fotografias de Zuleika Bisacchi.

Estruturas arquitetônicas carregadas de tempo e fatos constituem o suporte para a construção estética das obras de Bisacchi. Como colocado pela artista, “cada pedacinho tem uma emoção”. E, a partir dessa singularidade emotiva, desdobra-se a pluralidade estética e conceitual das obras produzidas.

Inserida nessas estruturas, a imagem de um corpo feminino indisciplinado, transitando e percorrendo os espaços arquitetônicos, recusando-se a manter uma simetria passiva e moldando-se nas formas geométricas das ruínas, que servem como palco da representação. A imagem do corpo, despida de vulgaridade e intolerância, rebela-se metaforicamente, desde a denominada fragilidade, contra tudo aquilo que a aprisione ou a submeta a regras e estigmas.

O deslocamento sequencial da imagem feminina, na série, simula um véu sutil e irreverente que ao mesmo tempo deixa rastros quase imperceptíveis de presença, como nuvens transparentes invadindo sutilmente estruturas impetuosas e aparentemente imóveis. Movimentos plásticos que interferem e se inserem na cartografia das colunas fálicas. Estruturas arquitetônicas que são cenário e bibliografia da história da humanidade.

A sutileza no deslizamento coreográfico, que a artista articula na inserção do registro da imagem feminina carregada de simbolismo cultural, leva-nos por um percurso silencioso e invasivo, que põe em xeque a estabilidade das ruínas arquitetônicas com sua configuração vertical e fálica, metáfora visual de masculinidade.

Esta relação entre estruturas arquitetônicas e imagem do corpo configura uma composição que evidencia a impossibilidade de vedar as possibilidades de representação, a partir de uma proposta de viés artístico, das mutações no comportamento e interpretação de costumes e modos de agir. Isso faz da série de fotografias um documento visual que contradiz normas de convivência culturalmente aceitas conforme as tradições, que são avaliadas por outras culturas como rígidas e incompreensíveis. A série constitui, assim, um manifesto de discussão sobre a assimilação e interpretação da cultura do Outro.

A inserção da imagem feminina traz à tona uma transparência leve e romântica que se entrelaça e escorrega na composição gráfica e pictórica. As imagens são projetadas numa flutuação que, no conjunto, constitui frames de um filme de uma dança corpórea e sequencial, espacialmente repetitiva, que transita por todas as peças e se estrutura como uma peca única. Movimentos que, congelados no suporte fotográfico, ressaltam a liberdade corpórea, as possibilidades rítmicas sugeridas visualmente e manifestas nas vibrações e emoções provocadas no espectador, tendo como referência as vivências musicais individuais.

Na transparência da imagem feminina dilui-se a diferença entre abstração e figurativismo. Ela penetra e se dissolve em cada interstício das ruínas, constituindo, mesmo na sua transparência, uma parte essencial do conjunto representado. Como parte da composição, a imagem consolida e defende seu território, tentando demonstrar, como uma janela aberta para fora e a partir de uma outra visão cultural, que a fragilidade é um elemento imprescindível na construção da cultura e no desenvolvimento social. Sem a fragilidade disfarçada pelos outros, a impossibilidade do todo seria evidente.

Bisacchi sugere, assim, uma relação estrutural na composição e na representação carregada de simbolismos, mistérios, ao mesmo tempo em que propõe um enlace de intimidade e reciprocidade nas relações entre as imagens.

Nas obras da artista, há uma manifesta atemporalidade na representação. As imagens que inspiram eternidade misturam-se à representação feminina do desejo. E, ao mesmo tempo, esse desejo representado evidencia uma necessidade de sobrevivência e permanência. O presente frágil dentro do passado simuladamente eterno, desgastado por fatores naturais ou pela ação, direta ou indireta, do homem. Há uma permanente mistura entre presente e passado, e uma profunda aura de significados e mensagens.

A artista oferece uma relação entre a presença e a ausência, entre a imagem reconhecível e realidade imaginável, que se revela em uma representação particular carregada de significados, intensidade e profundidade estética e conceitual.

Na série de fotografias, a artista estrutura uma montagem visual de um quebra-cabeça ilustrado de significados e metáforas. Ilustrações que estabelecem uma continuidade entre o âmbito natural e a interferência do homem neste, e entre as relações do próprio homem, oferecendo-nos ferramentas visuais que possibilitam estabelecer uma relação entre arte e vida. Com um matiz de qualidade indiscutível, Bisacchi reverencia o luxo na forma de representação da lucidez retrospectiva misturada com a realidade presente, num manifesto artístico único.

Andrés I. M. Hernández
Mestre em artes visuais
Curador e produtor

São Paulo, abril de 2011